ARTE E CONSCIÊNCIA #05
Da hamonia
A essência, a harmonia, não pode estar nem na imagem que se vê, nem no espelho que a reflete. A essência, a harmonia tem de estar noutro lado. Ou seja, não pode ser procurada nem dentro, nem fora de nós. Mas num outro lugar. Um lugar onde o conflito não exista. Um lugar onde simplesmente o conceito de interior e exterior não exista. Não se aplique.
Todo o conflito reside na dualidade. No oposto. No sim e no não. No alto e no baixo. Se este princípio não existisse, o próprio conflito não existiria. É a própria ideia, o próprio pensamento, que cria o princípio da dualidade. Assim, enquanto houver pensamento, não poderá haver harmonia. É para esta conclusão que nos remete o mito de Adão e Eva e a sua expulsão do paraíso: no mito bíblico, Adão e Eva são simbolicamente, os primeiros Homens da história. Os primeiros homens conscientes. Os primeiros aos quais a dualidade se impôs, e impôs por causa da consciência.
O homem, enquanto tal, só existe com a consciência. Sem consciência, não passa de um animal que reage e sobrevive. O episódio da expulsão de Adão e Eva, marca a separação entre o animal e o ser pensante. E a história é contada como a "queda", como se ter consciência fosse um estado inferior ao da animalidade. A "Queda" marca o início da separação.
Toda a história da humanidade é construída partindo da evolução do pensamento. Da evolução da linguagem. A linguagem pressupõe uma comunicação entre dois entes ou entidades: ou seja, a consciência entre dois seres que são exteriores a si mesmos. Toda a linguagem pressupõe o "eu" e o "tu". E aqui reside o princípio da dualidade. E logo do conflito. Toda a comunicação reside no conflito. Logo à partida, entre o que diz e o que houve, entre o que quer dizer alguma coisa e aquele que tenta perceber o que o outro quer dizer. Logo, uma comunicação que é viciada à partida, pois é feita através de interpretações, através de imagens que cada um projeta no espelho como sendo a sua verdade. Quem fala não diz o que quer dizer, quem houve apenas escuta o que quer ouvir. Logo a comunicação é falseada logo há partida. Porque quem fala pensa que diz o que quer dizer e quem escuta não ouve o que o outro verdadeiramente diz, mas apenas o que deseja ou quer ouvir. Assim, toda e qualquer forma de comunicação não é real e verdadeira, pois assenta meramente nos desejos e mentalidades dos seus operadores. Logo toda a comunicação é falsa. Toda a comunicação não é real ou verdadeira. Logo gera conflito. Por isso toda a História da humanidade é a história do conflito do Homem consigo próprio. A essência do Homem é o conflito.
Mas o Homem tem consciência deste facto. E no sentido de o superar, de se superar, inventou a religião e a ciência, dois polos opostos na tentativa de resolução do conflito. A religião através de uma espécie de retrocesso à essência primordial (o referido paraíso, onde o homem vivia em harmonia com o meio ambiente ou natureza) usando como estratégia a criação de um ser superior punitivo que impõe ao Homem a disciplina da atitude e pensamento corretos. Uma disciplina e pensamento baseado na autorrepressão, auto supressão, autopunição, subordinada a um conjunto de regras e dogmas que apenas aumenta a dualidade e o conflito.
A dualidade e o conflito residem na ideia de que na própria queda existiram dois espaços ou lugares diferentes: um espaço anterior à Queda, e outro posterior à Queda. O primeiro, o paraíso, onde o homem e a mulher viviam em harmonia com a natureza, onde o homem e a mulher eram natureza. Onde não possuíam o conhecimento, a sabedoria, a consciência do estar vivo. Só conheciam (sem verdadeiramente conhecer) um lado da vida. A vida sem conhecimento ou consciência. Ou pelo menos, um conhecimento ou consciência que convencionalmente atribuímos a nós mesmos. No entanto, a evolução da ciência trouxe-nos o conhecimento que a natureza também ela tem consciência, uma consciência diferente da que nos atribuímos a nós mesmos. Neste sentido, a questão do antes e do depois parece ser irrelevante. A questão parece ser mais de género, não de mais ou menos consciência, mais ou menos conhecimento. O nível de consciência que o homem possuía nos primórdios (e que Adão e Eva personificam simbolicamente) era de caráter diferente ao do homem atual. O seu nível de consciência estava adequado / ajustado ao nível de vida que levava nesse mundo primordial não poluído e, portanto, convencionalmente cheio de luz, de claridade. E que não devemos considerar de superior ou inferior.
A tradição religiosa (centro esta reflexão apenas nos relatos bíblicos) coloca a transição entre o mundo do paraíso (interior / espiritual) e o exterior (realidade) como se de uma queda se tratasse; como se o homem passasse de um estágio evoluído - de não consciência - a um estágio menos evoluído, o do conhecimento. Aqui se encerra muitas das conceções erradas da religião: o crente, o iluminado, coloca-se num estágio superior ao do não crente. O que vive a luz interior é superior ao que vive a escuridão exterior. Esta convenção interior / exterior, paraíso / inferno, tem alimentado a grande mentira das religiões, porque, efetivamente, nunca houve interior ou exterior, paraíso ou inferno. O que houve foi uma transição entre dois estágios de consciência, que não quer dizer que tenha sido melhor ou superior. Houve apenas uma transição de estágio; digamos, de uma consciência natural, para uma consciência humana; ou seja, duas formas de estar e perceber o mundo diferentes.
Sobre isto, ainda é interessante apreciar a forma como a tradição das religiões relatam ou manifestam esta transição: a questão da serpente e da árvore do conhecimento. Segundo a tradição religiosa, no jardim do paraíso (reparem que o paraíso é retratado como um jardim, um jardim bem cuidado e como tal, só a ideia de jardim derrota a essência natural - na natureza não há jardins. Há florestas, savanas, vales e montanhas. Não há jardins. Os jardins são espaços humanos, criados pelo homem. São tudo menos naturais); no jardim do paraíso existem duas árvores: a árvore da vida e a árvore do conhecimento. Ambas têm frutos. Mas só de uma é possível comer. A da árvore da vida. O fruto da árvore do conhecimento é um fruto proibido, e mais ainda, esse fruto é convencionalmente representado por uma maçã. Segundo a tradição religiosa é o lado "sexual" o responsável pela queda de Adão: a maçã é o símbolo de vénus, da tentação sexual. Logo é a tentação sexual que leva o homem a adquirir consciência? É através do sexo que o homem adquire o EU?
Enquanto Adão e Eva se alimentaram apenas da árvore da vida, eles viveram em harmonia com a criação. Não havia reprodução, necessidade de deixar um testemunho, de preservar a espécie, de pensar em termos de passado e futuro. Viviam no aqui e agora. Viviam interiormente em si mesmos. Como duas crianças brincando num jardim (preparado para os acolher e proteger(?).
A tradição aponta o dedo à mulher na tentação em provar o fruto proibido: é a mulher que tenta sexualmente o homem. Neste sentido, é a mulher que desperta primeiro para o sexo que o homem. Para existir tentação, tem de haver um lado que quer experimentar, que tem vontade de. Porque atribuir - tradicionalmente - este papel à mulher? No fundo, é atribuir à mulher o próprio papel da deusa Vénus. A mulher é Vénus. A deusa das tentações.
Neste sentido, o foco do homem está voltado para outro lado. Onde estará centrado o foco de Adão em terras de paraíso? Na caça e na guerra, certamente que não. Então qual é o centro, o interesse existencial de Adão? Em termos humanos, nenhum. Porque ele ainda não existe. Adão é como uma planta, uma ameba (da tradição gnóstica e hermética).
Ou seja, é Eva a que primeiro desperta para a consciência. E despertar para a consciência, é despertar para o seu corpo, para a sua sensualidade, para a sua própria essência como mulher. Para a sua coluna vertebral, que se eleva do solo, que se eleva da animalidade. Para a sua verdadeira nudez. E é em nudez que esta tentará o homem. Mas o que leva a mulher, Eva, a tentar o homem, Adão?
Qual a verdadeira razão para tal atitude?
Seguindo a tradição, é a serpente a causa da tentação. E a serpente aqui simboliza a líbido e a sexualidade. Ou seja, é a sexualidade a verdadeira razão da tentação. Não a da partilha de uma recente consciência, mas a descoberta do sentimento sexual. Do prazer sexual (?).
A tradição religiosa tem fortes argumentos para construir a história desta forma. Pessoalmente, não creio que tivesse acontecido assim. Certamente não aconteceria dessa forma. Não vejo a descoberta da inteligência e da consciência exclusivamente ligada a uma consciência sexual. A consciência é um estado de presença. Progressivamente (isto não acontece / aconteceu de um dia para o outro) o homem e a mulher foram alterando o seu nível de consciência, começaram a aperceber-se da sua existência no mundo, começaram a aperceber-se que tinham um corpo, e que este corpo vivia num determinado espaço, que este corpo tinha necessidades, precisava de se alimentar, de viver harmonicamente no mundo. Mesmo que este mundo (e este homem) fossem ideais de uma certa forma de viver, ou de estar no mundo. E esta forma de viver, a partir de uma certa altura, começa a alterar-se, seja por questões de evolução pessoal (o desenvolvimento da consciência) seja por questões de alteração do habitat. Ou seja, o dito paraíso, começou ele próprio a mudar, provocando novas reações e novos conhecimentos (e desejos) aos seus habitantes. E, muito rapidamente, o novo homem viu-se num mundo desconhecido e inóspito. Ao ganhar consciência, o homem percebeu efetivamente como era o mundo. E o choque foi imenso. A uma escala catastrófica. De tal forma que ainda hoje procura regressar a esse paraíso primordial, sem perceber que, efetivamente, ele nunca saiu de lá. Apenas o transformou.
The Ascending Alnirus
"Eden", Ian Cósmico, 2021 |